O que é possível encontrar em comum em uma pesquisa sobre planos de saúde, justiça ambiental e qualidade de hospitais manicomiais? Simples, todas as três sofrem com problemas de cerceamento. Esse foi o foco do painel coordenado pelo pesquisador da ENSP Paulo Amarante durante o 10º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Entre os expositores estava o pesquisador da Escola Marcelo Firpo, e o tema proposto para debate foi Cerceamentoda pesquisa em saúde no Brasil. Segundo Amarante, trata-se de um debate pouco aprofundado que precisa cada vez mais ser incorporado nos encontroscientíficos pelo país.
A vice-presidente da Abrasco e pesquisadora da UFRJ, Ligia Bahia, foi a primeira a se apresentar relatando sua experiência negativa com uma pesquisa realizada por meio de edital do CNPq. O objetivo do trabalho foi avaliar a qualidade e a cobertura básica oferecida por diferentes planos de saúde do Brasil. O edital recebeu investimentos de R$ 86 mil em 2006, e, com a verba, a equipe analisou dez empresas que ofereciam planos de saúde no Rio de Janeiro e dez em São Paulo. Os resultados, segundo a pesquisadora, mostraram diversas mazelas, pois os serviços contratados não ofereciam coberturas propostas, tais como parto ou hospitais com centros cirúrgicos.
Em dezembro de 2008, Ligia apresentou os dados para o CNPq e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em 2012, a pesquisadora passou a receber cartas do CNPq informando que ela deveria devolver R$ 114 mil (valor do edital mais correção monetária), pois o relatório técnico final do projeto não tinha sido aprovado e a pesquisa não havia cumprido os objetivos propostos inicialmente. Mas o estudo recebeu três pareceres favoráveis sobre sua execução. “Um sofrimento psíquico inigualável que me levou a uma situação limite, pois não sabia o que fazer.”
Ligia contou que entrou em contato com diversos pesquisadores, emitiu vários relatórios para o CNPq sempre em busca de solucionar o problema. Somente quando os resultados da pesquisa foram divulgados pela imprensa – causando irritação nos gestores do CNPq e da ANS –, é que a situação foi praticamente contornada. No momento, o CNPq aceitou o relatório final do projeto e a prestação de contas de todo o trabalho. Mas a ANS ainda exige explicações sobre uma passagem e uma diária referentes a um trabalho de campo em São Paulo. “Nessa história toda, tive de contratar um advogado para me ajudar no processo de defesa, outros três pareceristas foram convocados e avaliaram positivamente o estudo, mas ainda assim sou considerada uma pesquisadora problemática”, concluiu.
Os quatro grandes mecanismos de cerceamento à pesquisa ambiental
A exposição do pesquisador da ENSP Marcelo Firpo foi diferenciada. Ele não apresentou um caso de cerceamento de sua pesquisa, mas sim um panorama de como o campo da justiça ambiental sofre quando enfrenta grandes corporações em prol da defesa do meio ambiente. “O que encontramos hoje no capitalismo contemporâneo é a contradição de necessidade de produção de bens que demandam enorme quantidade de energia, por exemplo, e acabam por extrair recursos naturais do planeta, gerando grandes conflitos ambientais. Vivemos uma crise de forma radical, em que o capitalismo desenfreado de hoje sofre com a falta de recursos humanos qualificados, reduz nossa biodiversidade e produz altos índices de poluição. Temos de repensar nosso modelo de viver”, disse.
Marcelo destacou os quatro grandes mecanismos existentes de cerceamento à pesquisa ambiental. O primeiro é a violência e a barbárie contra os ativistas e os militantes nos territórios. Como forma de solução, o pesquisador apresenta a questão de se dar maior valor aos direitos humanos e a necessidade de se transformar o horror da violência em símbolo de dignidade, luta e transformação social. O segundo ponto é a criminalização de ativistas e pesquisadores pelas empresas poluidoras ou órgãos de governo. Os desafios encontrados são em relação a mobilizar a sociedade e apoiar mais e com melhor qualidade os pesquisadores e servidores ameaçados nas pesquisas, envolvendo nesse processo a OAB. A terceira questão explorada por Firpo diz respeito ao cerceamento financeiro, relacionado aos mecanismos de incentivo à pesquisa. “É necessário enfrentarmos os conflitos de interesse nos editais públicos para promovermos pesquisas independentes e a contra-expertise”, afirmou.
Por fim, o pesquisador destacou o cerceamento simbólico da própria academia e de seus mecanismos de avaliação de qualidade e produtividade. Para Firpo, é necessário transformar o modelo de ciência normal, pensar em novas epistemologias e ampliar o diálogo dos saberes com a sociedade.
O último painelista do dia 17/11 foi o professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) Marcos Garcia. Ele falou sobre o processo judicial que está sofrendo das empresas particulares donas de manicômios na cidade de Sorocaba (SP), por conta da pesquisa em que analisa os óbitos ocorridos nesses ambientes. O trabalho mostrou que, nos últimos oito anos, ocorreram 863 mortes nos manicômios da região de Sorocaba, maior polo manicomial do Brasil. A mortalidade calculada em óbitos/mês para cada mil internos na região foi de 3.025 no período entre 2004 e 2011, sendo 118 % maior que a dos outros 19 manicômios do estado com mais de 200 leitos, que registraram 1.386 óbitos/mês. A média de idade dos pacientes falecidos mostrou-se também significativamente menor na região (53 anos) em contraponto ao restante do estado de SP (62 anos).
Marcos explicou que, com a divulgação dos resultados, está sendo processado em R$ 80 mil por danos materiais e morais, uma vez que seis instituições de Sorocaba consideraram os dados inexatos, equivocados ou passíveis de erros. “Essa ação na Justiça é descabida de embasamento, já que todos os dados da pesquisa foram obtidos no Datasus, sistema do próprio Ministério da Saúde”, explica. “É uma iniciativa clara de tentar censurar a liberdade de pesquisa e abre um precedente perigoso no Brasil”, encerrou
Fonte: http://www.ensp.fiocruz.br
0 comentários:
Postar um comentário